segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Uma inteligência a ser (re) descoberta

Depois de mais algum tempo de hiato, volto empolgado para escrever sobre uma figura de nossas comunicações no século XX: Carlos Queiroz Telles. Li há algum tempo seu livro de memórias, Tirando de Letra (Editora Best Seller, 1993), o qual recomendo bastante e que me inspirou a vir aqui falar dele.
Queiroz, como era chamado desde os tempos de propaganda, em que se iniciou em fins da década de 1950, foi publicitário, escritor (inclusive de livros infantojuvenis), poeta, jornalista, dramaturgo, professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), chefe do departamento cultural da TV Cultura por dez anos e, certamente, embora não o tenha conhecido, uma pessoa de grande senso de humor e inteligência, a julgar pelos escritos que deixou.
Este seu livro de memórias traça ao mesmo tempo a linha evolutiva de sua vida profissional (o foco do texto) e ajuda a construir a história recente da publicidade, da televisão e do teatro no Brasil. Queiroz enfrentou o desafio de adaptar para o teatro Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões (numa peça que recebeu o nome de A Viagem, encenada por Ruth Escobar e arrebatadora de diversos prêmios na década de 1970) e Os Irmãos Karamazov, de Fiódor Dostoiévski, para a televisão, numa novela da extinta Rede Tupi que se chamou O Julgamento e foi exibida no horário nobre entre 1976 e 1977.
Aliás, foi quase unicamente por Queiroz ter sido adaptador desta obra capital do escritor russo foi que eu me interessei em ler suas memórias. Na hora em que vi o livro me lembrei de que ele havia escrito a novela em parceria com Renata Pallottini e, em sendo um livro de rememorações de sua vida, me ocorreu que quem sabe pudesse falar na novela. E falou mesmo, um relato ao mesmo tempo engraçado, curioso e entristecedor.
Renata Pallottini, parceira de Queiroz na autoria da novela.
Conta Queiroz que, quando arriscou oferecer à Tupi o projeto que havia imaginado, a adaptação de Os Irmãos Karamazov, preparou-se o mais que pôde para uma reunião com o supervisor geral da teledramaturgia da casa, Carlos Zara. Levou todos os noventa capítulos previstos escaletados, ou seja, planejados em minúcias, embora sem os diálogos, claro. Ao chegar na sala de Zara começou a desenrolar o supertrabalho que trouxera e "começou a chegar gente na sala do Zara". Claro que o projeto foi aprovado sem delongas, mas aí é que começariam as dificuldades, já que Renata Pallottini também estreava como autora de novela, tendo na ocasião escrito alguns unitários.
Numa visita aos estúdios da emissora para ver como estavam ficando os cenários para o início das gravações, Queiroz estranhou as cores e perguntou a um funcionário por que todos os cenários eram marrons. "Acha que tem outra cor de tinta aqui na Tupi?" E essa resposta ocorreu na mesma emissora que acabara de apresentar os sucessos A Viagem (Ivani Ribeiro), Meu Rico Português (Geraldo Vietri), Ídolo de Pano (Teixeira Filho), entre tantos outros.
Passados o choque e a surpresa, Queiroz e Renata desenvolveram um trabalho árduo de adaptação do romance, não apenas transpondo a história de uma aldeia russa para uma cidade do interior paulista, mas analisando as características dos personagens e procurando manter ao máximo a integridade da obra, sem deixar de lado as necessidades do gênero telenovela como os ganchos, o encadeamento dos diversos núcleos etc. - embora, diga-se de passagem, quem já leu esta ou qualquer outra obra de Dostoiévski sabe que ele encadeava muito bem as tramas e construía muito bem seus personagens, principais e secundários (mais algumas curiosidades a respeito do trabalho de Renata e Queiroz na autoria da novela, leia-se o livro).
Eva Wilma e Cláudio Corrêa e Castro em cena da novela.
Dirigida por Edison Braga, O Julgamento trazia em seu elenco Carlos Zara, Eva Wilma, Cláudio Corrêa e Castro, Adriano Reys, Ewerton de Castro, Tony Ramos, Elaine Cristina, Cleyde Yaconis, Maria Luiza Castelli, Henrique Martins, Elias Gleizer, Wanda Stefânia, Carminha Brandão, Sílvio Rocha, Denise Del Vecchio e Ruthinéa de Moraes, entre outros.
Irene Ravache, apresentadora de A História da Telenovela.
Carlos Queiroz Telles foi também um dos responsáveis por um dos melhores trabalhos já feitos na televisão para contar a história da teledramaturgia brasileira: a série A História da Telenovela, produzida pela TV Cultura de São Paulo, estreada e exibida em 1979 e reprisada ao longo da década de 1980, com apresentação de Irene Ravache e os comentários mais que próprios de Helena Silveira. Cada programa era centrado num aspecto da produção de teledramaturgia ou de sua história - o teleteatro, o especial, maquiagem e caracterização, cenografia, direção, a obra de cada autor, o trabalho de construção dos personagens pelos atores... Uma joia, que mesmo hoje, ainda que as novelas mais recentes de que se trata nela sejam de seu ano de produção, mereceria uma reprise integral.
Nascido em 1936, Carlos Queiroz Telles faleceu em 1993, salvo engano pouco depois da chegada de Tirando de Letra às livrarias. Faz falta no cenário nacional uma figura com sua inteligência, senso de humor e que primava pela lealdade e firmeza de princípios, como transparece das páginas de suas memórias.