domingo, 13 de março de 2011

A falta que o teleteatro faz

Atualmente, contando as reprises e as produções estrangeiras exibidas dubladas, temos em exibição um total de treze novelas, sem contar a “novelinha” Malhação. Deixando-as de lado e sem contar minisséries e séries, sinto particularmente falta de programas de um gênero que infelizmente foi deixado de lado: o unitário, em suas variadas vertentes.
Unitário nada mais é que, sem que seja integrante de uma série em que os episódios, embora fechados, retomem os mesmos personagens toda semana, traz uma história que se desenvolve e se conclui num único programa, geralmente de uma hora de duração. São exemplos disso os “especiais” produzidos pela Rede Globo nos fins de ano (geralmente como programas-piloto dos projetos pensados para a grade do ano seguinte) e os “casos especiais” exibidos com esta e outras denominações desde a década de 1970.
Atento principalmente para a falta, por razões nas quais pensaremos a seguir, de uma vertente de teledramaturgia em especial: o teleteatro, pai do formato unitário, nascido com a própria TV no Brasil, na Tupi, com programas como TV de Vanguarda e Grande Teatro Tupi, na década de 1950. O teleteatro, que reinou absoluto antes da era da telenovela, tendo inclusive convivido com esta por algum tempo até sucumbir completamente, era não só uma vitrine das grandes obras da literatura e do teatro universais ou do melhor elenco disponível, mas principalmente um exercício ímpar de dramaturgia para atores, diretores, produtores, técnicos e, acima de tudo, para os telespectadores.
O teleteatro, de grande força nas décadas de 1950 e 1960, viu seu público habituar-se às telenovelas e aos enlatados norte-americanos e já na década de 1970 transformou-se, em iniciativas como o já citado Caso Especial e o programa Teatro 2, na TV Cultura, uma iniciativa de Nydia Lícia. Depois de anos em busca de uma linguagem para a televisão, sem que se vivesse apenas de copiar o cinema e/ou aproveitar as fórmulas consagradas pelo rádio e também, conforme depoimentos de pioneiros do teleteatro como Walter George Durst, graças a certo esgotamento do gênero junto ao público, depois de quase duas décadas, os especiais globais e as produções da Cultura mantinham o estilo em voga, embora sem o sucesso de outrora.
Lima Duarte em Corpo Fechado, no Teatro 2
O Teatro 2, do qual alguns programas foram reprisados em certas ocasiões pela emissora – como Vestido de Noiva (Nelson Rodrigues), Crime e Castigo (Fiodor Dostoievski), Réveillon (Flávio Márcio), A Ceia dos Cardeais (Júlio Dantas) e Corpo Fechado (Guimarães Rosa), entre outros –, foi um verdadeiro laboratório de criação para diretores como Adhemar Guerra e Antunes Filho, com verdadeiros híbridos de teatro e televisão como resultado. Caso Especial, por sua vez, foi um programa que teve seu auge na década de 1970 e que, ao longo dos anos, com a denominação modificada para Brasil Especial ou, mais recentemente, Brava Gente, manteve na televisão brasileira a tradição, por assim dizer, dos unitários que, convém lembrar, são deixados de lado pelas emissoras muito também por custarem caro, e o investimento isolado em cada história ser muito alto, em especial se comparado com os custos das telenovelas, que se diluem no decorrer dos meses de produção.
O próprio Você Decide, da década de 1990, apesar de seu caráter interativo, já que nele o público decidia o final das histórias entre duas ou mais opções disponíveis, não deixa de ser também um filho dileto do teleteatro, com sua característica básica de contar o começo, o meio e o fim de uma história numa mesma apresentação. Tal como os teleteatros clássicos, também esgotou-se com o passar dos anos.
Além de esgotamento junto ao público (conclusão a que se chegou já na década de 1970), da carestia da produção e da hegemonia da novela na teledramaturgia, que outros fatores impediriam a presença de um TV de Vanguarda, um Teatro Cacilda Becker ou coisa parecida na televisão hoje em dia? Não muito tempo atrás a TV Cultura, sempre ela, exibiu o ciclo Senta que Lá Vem Comédia, em que a cada semana eram exibidas peças que iam desde Toda Donzela Tem um Pai que É uma Fera (Gláucio Gil) até Os Ossos do Barão (Jorge Andrade). Outro ciclo especial, Direções, em suas três edições, propôs novas formas de se fazer dramaturgia em TV, algo próximo do teleteatro, guardadas as devidas, inclusive com diretores como André Garolli, de experiência nos palcos e nos estúdios, e Rodolfo Garcia Vázquez, d’Os Satyros.
Claro que atualmente não é estritamente necessário, como o era para o “seleto e culto” público de TV dos anos 50, televisionar peças simplesmente ou trazer as melhores companhias teatrais para apresentações nos estúdios. No entanto, o unitário, ainda que de maneira eventual, dosada, serve para aliviar o público das histórias parceladas que se arrastam por meses e meses. Gosto muito de telenovelas, mas boas histórias parceladas podem conviver sem maiores problemas, penso, com outras tão boas quanto que se fechem numa apresentação só.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Jorge Andrade: um intelectual incompreendido

Um olá a todos, mais de ano já passado desde a última postagem. Confusões pessoais e profissionais e, não mentirei, preguiça e falta de inspiração, ora uma ora outra, me levaram a não escrever esse tempo todo aqui. Mas estou de volta, com os mesmos propósitos (rs).
Postarei um texto que escrevi para o blog Memória da TV, do amigo Guilherme Staush, a respeito de Jorge Andrade, o grande dramaturgo. As ilustrações, como se poderá notar (rs), são do blog.


Talvez esteja equivocado ao chamar Aluísio Jorge de Andrade Franco de “intelectual incompreendido”. Ou não. Saudado entre os maiores dramaturgos do teatro brasileiro moderno, com sua obra permeada pela troca de mãos do poder dos fazendeiros cafeicultores para a burguesia representada em especial pelos imigrantes que enriqueceram, tema recorrente junto do conflito de gerações, de valores e o embate entre a tradição e a modernidade.
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Este paulista de Barretos nascido em 1922, principalmente depois de se tornar autor de novelas de televisão se viu entre o teatro, em que era tido como autor cuja qualidade dramática era elitista e requintada demais, e a televisão, em que igualmente seu texto era visto como “de muita qualidade” para o veículo. Um contra-senso, quando nos lembramos do conceito que Jorge Andrade fazia do trabalho de novelista quanto a poder propagar as ideias de suas peças para muito mais pessoas ao mesmo tempo, se as expressasse por meio das telenovelas, de tão grande alcance. Pensamento este, aliás, compartilhado por Dias Gomes, também nascido em 1922 (e morto em 1999) e que também passou do teatro à televisão por enxergar no veículo condições de propagar os ideais de seus personagens a muito mais gente simultaneamente.

São de sua autoria peças que marcaram a evolução do teatro brasileiro no século XX como A Moratória, Os Ossos do Barão, A Escada, Vereda da Salvação, além de Pedreira das Almas, Senhora da Boca do Lixo, Milagre na Cela e outras. Seu nome é um marco quando se reconstitui o significado do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) para a história do teatro no Brasil.

Era sabido que, por defender sua arte e o trabalho artístico possível mesmo num veículo considerado menor por muitos intelectuais, pouco ligava para números de audiência ou pesquisas de opinião ao conduzir suas histórias, desenvolver em capítulos os dramas de seus personagens. Tampouco Jorge Andrade se acreditava influenciável pelo desempenho dos atores, ao ver o trabalho no ar, para desenvolver o que ainda estaria por vir.

Tinha por hábito, sempre que acertava a escrita de uma novela, o desenvolvimento de uma sinopse de volume considerável e descrições detalhadas de características dos personagens, chegando a três ou quatro laudas para cada um deles. Bem como tinha toda a história que pretendia contar predeterminada, construída, e com isso mesmo justificava seu dar de braços para o Ibope ou para pesquisas encomendadas pela emissora a respeito de pares românticos, temáticas etc.
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A estreia de Jorge Andrade como autor de telenovelas deu-se em 1973 quando, convidado pela Rede Globo, iniciou o trabalho de adaptação de sua peça Os Ossos do Barão para a televisão. O horário era o das dez da noite, e a novela substituiria O Bem-amado, de Dias Gomes, primeira em cores produzida no Brasil e marcada pelo sucesso.
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Na novela, Andrade juntou os eixos principais de duas peças: além da que intitulava o trabalho e tratava da busca de um ex-colono italiano, hoje industrial poderoso, por um título de nobreza, figurava também A Escada com o tema dos patriarcas que, já idosos, levam os filhos a considerar a ideia de interná-los num asilo. Egisto Ghirotto, o italiano, foi interpretado por Lima Duarte. Antenor e Melica, os velhinhos cujos filhos se viam em torno da decisão de internar ou não, eram Paulo Gracindo e Carmem Silva. Junto a eles, um elenco estelar: Leonardo Villar, Dina Sfat, José Wilker, Lélia Abramo, Maria Luiza Castelli, Sandra Bréa, Renata Sorrah, Elza Gomes, José Augusto Branco, Gracindo Júnior, Ruth de Souza, Edney Giovenazzi e Bibi Vogel, entre outros. A direção foi de Régis Cardoso. Como diz Ismael Fernandes em seu Memória da Telenovela Brasileira (Brasiliense, 1994), “a fusão das duas peças teatrais foi o esteio funcional de toda a novela, as obras se ajustaram dando possibilidade de criação em que uma completava as indagações da outra”. Os outrora poderosos barões de café, enfraquecidos e pobres, moravam agora nas cidades, em apartamentos que correspondiam a frações ínfimas de suas casas senhoriais, acompanhando impotentes a ascensão de outros grupos que ocupavam o lugar que outrora foi deles.

Foi um trabalho de êxito de crítica e de público, no ar de outubro de 1973 a março de 1974, dirigido por Walter Avancini. Sua segunda investida, dois anos depois e no mesmo horário das dez, já não pode ser considerada da mesma forma. O Grito, exibida de outubro de 1975 a abril de 1976, enfrentou muitos problemas. Principalmente por exibir São Paulo de uma maneira considerada fora da realidade da cidade, quando na verdade a mostrava como era e é: caótica, claustrofóbica, confusa. O grito do título tanto era o de Paulinho (Marcos Andreas), o filho da ex-freira Marta (Glória Menezes) que gritava de madrugada devido a uma doença, perturbando o sono dos moradores do Edifício Paraíso (espécie de microcosmo da cidade) e gerando um movimento para expulsá-los de lá, como podia ser o do homem urbano, oprimido pela cidade grande, seus conflitos, problemas, questões que mexem com a vida de todos, mas para as quais poucos atentam, que tem em Gilberto (Walmor Chagas) grande representante. O Paraíso, décadas antes construído para abrigar famílias abastadas, passa por adaptações e aceita como moradores pessoas de classe média e baixa, enquanto no andar superior moram os aristocratas Edgar (Leonardo Villar) e Mafalda (Maria Fernanda).
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Apenas três anos depois, em maio de 1979, e agora na Rede Tupi, é que Jorge faria sua terceira investida no gênero telenovela. Exibida às nove da noite, num esquema parecido com o “quando acabar a novela da Globo” que o SBT adota, ia ao ar Gaivotas, cuja trama trazia como protagonista Daniel (Rubens de Falco), um empresário riquíssimo que reúne seus amigos de colégio trinta anos depois da formatura da turma.
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Certo, mas para quê? Desejo de ensinar a eles como dar certo na vida tal qual ele, vontade de humilhá-los como faziam com ele, agora que está em condições? Simplesmente passar uns tempos com eles, quem sabe tentar conhecê-los melhor e dar início enfim a amizades verdadeiras, passada a juventude? Rever o grande amor, com a desculpa da reunião da turma? Puro saudosismo? Essa indagação permanece ao longo de toda a trama, mesmo quando se sabe que ele, acusado injustamente de ter parte na morte da professora Norma (Selma Egrei), quer provar sua inocência e descobrir o verdadeiro culpado.
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De origem pobre, Daniel só conseguiu estudar graças a uma bolsa que ganhara no Externato Pacheco, de propriedade de Dona Idalina (Márcia Real). Os alunos, em especial Maria Emília (Yoná Magalhães), seu grande amor, o desprezavam. Nos trinta anos que se seguiram à humilhação da formatura, Daniel ascendeu espantosamente enquanto os colegas decaíram, embora hoje permaneçam apegados a valores e hábitos de antes – em especial Maria Emília, que conserva a altivez. Durante alguns dias, a reunião da turma no solar de Daniel traz de volta o passado que une a todos num segredo comum e mostra como o presente pode ser determinado de forma decisiva pelo passado. Não à toa, o slogan promocional da história era “O reencontro do tempo perdido, trinta anos depois”. Exibida até outubro, Gaivotas tinha o “Libertango” de Piazzolla na abertura e, no elenco, Isabel Ribeiro, Altair Lima, Cleyde Yaconis, Berta Zemmel, John Herbert, Wilson Fragoso, Laura Cardoso, Elizabeth Gasper, Serafim Gonzalez, Paulo Hesse, Abrahão Farc, Gésio Amadeu, Geórgia Gomide, Francisco Milani, entre outros, além de atores jovens que depois se consagrariam no gênero: Edson Celulari, Cristina Mullins, Paulo Castelli. A direção foi de Antonio Abujamra, Henrique Martins e Edison Braga.
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Entre 1981 e 1982, adaptou o romance O Fiel e a Pedra, de Osman Lins, para o projeto Tele-romance da TV Cultura, e assumiu a autoria de duas telenovelas “com o bonde andando”, na Rede Bandeirantes: Dulcinéa Vai à Guerra, de Sérgio Jockyman, e Os Adolescentes, de Ivani Ribeiro.
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Em substituição a Os Adolescentes, a emissora estreou em abril de 1982 no horário (21h15) Ninho da Serpente, grande momento da obra do autor. O título fazia referência à mansão do Jardim América, São Paulo, praticamente cenário único da história, e à matriarca Guilhermina Taques Penteado (Cleyde Yaconis) reinava soberana junto a filhos, genros, netos e criados, todos às voltas com a herança de Cândido Taques, seu irmão, que ao morrer deixa a dinheirama para Matheus (Kito Junqueira), seu enfermeiro (e, sabemos depois, seu filho). A herança move todos os personagens, tanto que o título da novela, dirigida por Henrique Martins e Antonio Abujamra, quase foi Os Herdeiros.
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Ainda que desprestigiada pelo testamento do irmão, Guilhermina não perde a pose, apegada que é às tradições quatrocentonas, importando para ela manter sua família no poder, de que forma for. Assim, não vê obstáculo no casamento de Matheus com sua neta Lídia (Eliane Giardini), embora ele tenha origem pobre, mas é terminantemente contrária ao romance do irmão de Lídia, Karl (Paulo César Grande), com a jovem Marinalda (Mayara Magri), uma das empregadas da casa, que termina morta após ser enforcada em seu quartinho.
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Um mês após a estreia, Ninho da Serpente passou para as oito da noite, passando a competir com Janete Clair e sua Sétimo Sentido na Globo, numa cartada em que a emissora usou o slogan “A novela das oito mudou de canal”. No elenco, ainda as presenças de Beatriz Segall, Laura Cardoso, Márcia de Windsor, Luiz Carlos de Moraes, Antônio Petrin, Carmem Silva, Selma Egrei, Othon Bastos, Imara Reis, Jairo Arco e Flexa, Raymundo de Souza, Sônia Oiticica, Nydia Lícia e Juca de Oliveira, entre outros. Ainda, destaque para a presença da atriz Denise Stoklos, de raros trabalhos em televisão, vivendo Oriana, uma das criadas.
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O último trabalho de Jorge Andrade na telenovela, Sabor de Mel, foi lançado em abril de 1983 pela Rede Bandeirantes de forma audaciosa, o que se verifica no slogan “A novela das oito mudou de canal”, novamente utilizado nas propagandas, valendo-se do fato de a Rede Globo então estar com uma reprise em pleno horário nobre, a de O Casarão (1976), de Lauro César Muniz. A protagonista era Laura (Sandra Bréa), a “esfinge do Morumbi”, mulher riquíssima que resolve anunciar no jornal que pagará 50 milhões de cruzeiros a quem conseguir decifrar um enigma que propõe.
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A convivência de Laura com os diversos interessados que se apresentam, suas histórias de vida e propósitos para o que fazer com o dinheiro, era o mote principal. E a emissora também oferecia aos telespectadores a oportunidade de ganhar dinheiro desvendando o enigma de Laura, a saber: “Não existiu, mas aprisionou e torturou; envenenou e corrompeu; atormentou, levando à ignorância e ao medo. Suplício do qual o homem, cumprindo seu destino, libertou-se e transcendeu. Dragão maligno, que os jovens de hoje venceram com a espada da esperança.” A resposta era “o pecado”.
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No elenco milionário contratado pela emissora estavam Raul Cortez, Flávio Galvão, Gianfrancesco Guarnieri (que substituiu Paulo Autran pouco antes da estreia), Célia Helena, Eva Todor, Carmem Silva, Françoise Forton, Mila Moreira, Karin Rodrigues e Odilon Wagner, entre outros, além da presença de Clodovil Hernandez de forma quase biográfica. Infelizmente, o impacto dos capítulos iniciais, de boa audiência foi sufocado pela Rede Globo com a antecipação da estreia de Louco Amor, de Gilberto Braga, para o dia 11 de abril, uma semana depois. Assim, Sabor de Mel acabou perdendo público e terminou como fracasso de audiência, sendo inclusive encurtada (terminou em julho) e rendendo a Jorge um afastamento, por se negar a “baixar o nível” a fim de melhorar os números.
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Jorge Andrade faleceu em 1984, entristecido pela condição de sua obra, perdida entre a aceitação teatral e televisiva. Um caso de autor “perseguido” não pela falta de qualidade de seus trabalhos, mas justamente por apresentá-la em excesso, quem sabe. Para nós, principalmente considerando suas peças teatrais, fica o legado de um autor que, através de seus personagens apegados a valores ultrapassados, títulos de nobreza, “pedigree”, e seus embates com aqueles que os querem fazer compreender o mundo moderno, que dispensa esse tipo de coisa, apresentou uma representação da construção da sociedade paulista e brasileira, abordando seus problemas para que, a partir dessa abordagem, eles fossem discutidos e, quem sabe, solucionados. Declarou ele certa vez que “só através da cultura e da compreensão dos seus problemas é que o homem se liberta”. Faz sentido.